Numa entrevista ao jornal Corriere della Sera, em 11/set./1981, quando da morte do psicanalista Jacques Lacan, Michel Foucault afirmou: “ser psicanalista para Lacan supunha uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito”.
Lembrei-me dessa entrevista enquanto pesquisava na internet as notícias das diversas atividades realizadas em todo Brasil pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, celebrado na última terça-feira (18/maio). A data foi escolhida em 1987 em Bauru, São Paulo, onde ocorreu o Congresso de Trabalhadores de Serviços de Saúde Mental. As atividades serviram para chamar a atenção da sociedade para as diferentes práticas de acolhimento às pessoas abatidas pelo sofrimento psíquico. O evento merece todo o respeito e apoio num momento em que ocorrem as plenárias municipais e estaduais para escolherem os delegados que participarão, com direito a voz e voto, da IV Conferência Nacional de Saúde Mental.
No site do Ministério da Saúde, a Política Nacional de Saúde Mental, apoiada na Lei 10.216/02, é apresentada com o seguinte objetivo: “busca consolidar um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária. Isto é, que garante a livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, comunidade e cidade, e oferece cuidados com base nos recursos que a comunidade oferece. Este modelo conta com uma rede de serviços e equipamentos variados, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III). O Programa de Volta para Casa, que oferece bolsas para egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos, também faz parte desta Política”.
Os serviços de saúde pública voltado ao atendimento “de pessoas com transtornos mentais” partem de determinadas circunstâncias históricas que envolvem aspectos políticos e epistemológicos (a construção de um saber sobre a loucura). A construção de diagnóstico e o tratamento da experiência da loucura dependem de uma definição básica: a loucura é uma doença mental. O próprio conceito de “transtorno mental” para designar as pessoas abatidas pelo sofrimento psíquico já está contido nessa premissa básica. Mas desde quando a experiência da loucura foi designada como doença mental?
A criação dessa data comemorativa deu visibilidade ao Movimento da Luta Antimanicomial que, por sua vez, seguia os trilhamentos do movimento da antipsiquiatria instaurado pelos surrealistas na França e o pela Reforma Psiquiátrica, surgido na Itália nos anos 70. As condições de confinamento asilar dos manicômios psiquiátricos foram denunciadas ao longo de décadas e travou-se uma luta contínua para libertar os loucos da condição subanimal em que viviam. O Museu da Loucura em Barbacena (MG) nos dá um exemplo da situação retratando quem eram os loucos internados nos manicômios:
As práticas de internamento da loucura possuem uma história. Até 1650, a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira à experiência da loucura. A partir daí ocorreu brusca mudança: o mundo da loucura vai se tornar o mundo da exclusão. Por toda a Europa, a prática do internamento era uma medida de assistência social, sem vocação médica alguma. Na França, por exemplo, cada grande cidade terá seu Hospital Geral, para onde são encaminhamos os loucos, os pobres inválidos, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados, os usuários de ópio, os portadores de doenças venéreas e demais rebotalhos sociais. O internamento não visava ao tratamento específico dos loucos. Seu propósito, até a Revolução Francesa, era reestruturar o espaço social: fazer uma higienização das ruas e praças, recolhendo todos os desvalidos e encaminhando- os à internação no Hospital Geral. O modelo republicano implantado libertou os pobres e desvalidos do internamento, reservando o espaço apenas para os loucos: os herdeiros naturais do internamento.
Foucault em seu livro-acontecimento História da Loucura na Idade Clássica (Ed. Perspectiva) , delineou a constituição histórica da loucura como doença mental, afirmando que, antes do século 19, a experiência da loucura era bastante polimorfa, tendo sido com o advento das práticas de internamento no Hospital Geral que a categoria de doença mental começou a ser construída para diagnosticar os loucos e aplicar técnicas corretivas de tratamento: “numa época relativamente recente o Ocidente concedeu um status de doença mental à loucura e as práticas de internamento adquiriram uma nova significação tornando-se medida de caráter médico”. É nesse contexto que a psiquiatria será inventada e uma psicopatologia, construída.
A atualidade da luta antimanicomial está diretamente ligada às reivindicações por políticas públicas que possam acolher em tratamento e cuidados aqueles afetados pela experiência da loucura. Ocorre que a loucura perdeu seu diagnóstico diferencial ao ser subjulgada pela categoria de doença mental. Os protocolos e consensos na comunidade científica definem a experiência da loucura como doença mental e determinam políticas públicas de atendimento em saúde mental. Os diagnósticos da loucura, feitos com base no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM IV) e na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10), dominam hegemonicamente os discursos e práticas de atenção à saúde mental e pouco contribuem para um avanço significativo no tratamento da experiência da loucura.
Como os trabalhadores do campo da saúde mental podem se desvencilhar dessa armadilha construída historicamente que captura os discursos e práticas de resistências? Como os cuidadores, que acolhem os abatidos pelo sofrimento psíquico, podem restituir a experiência da loucura como um modo de enunciação da verdade do sujeito, como um grito de desespero e demanda de amparo?
Por Márcio Mariguela
Psicanalista e Professor de Filosofia
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