quinta-feira, 25 de novembro de 2010

FAVELAS INCENDIADAS: Onde há fumaça, há fogo

Por Débora Prado


No fim do dia, me deram logo 3 injeções e o médico perguntou como é que eu tava lá em pé. Mas, na hora do fogo a gente nem pensa nisso, né?”, dizia rindo um morador que perdeu suas doses de insulina no incêndio da favela Real Parque e quase teve uma crise de diabetes. Ele conta que também perdeu os eletrodomésticos recém comprados via crediário e só sobraram as dívidas. Os moradores das favelas têm um cotidiano estranho para as classes com mais renda em São Paulo. Não é só pelas condições precárias e a difícil luta pelo direito a uma moradia digna. Nem pela exclusão social, preconceito, presença da tropa de choque na vizinhança ou pelo descaso do poder público. É também pela convivência constante com incêndios, que estão fazendo desses moradores especialistas na contenção de fogo.

Segundo dados do Corpo de Bombeiros de São Paulo, a cidade registrou 113 incêndios em favelas desde o início do ano até a última semana de setembro e, enquanto esta reportagem era apurada, um novo incêndio deixou cerca de 1200 pessoas sem casa na Real Parque, na zona sul. No dia 24 de setembro, uma sexta-feira, depois de dois focos de incêndio controlados por moradores, um terceiro queimou centenas de barracos na comunidade, além de atingir dois alojamentos ‘provisórios’ em que dezenas de famílias viviam desde outro incêndio que aconteceu há 8 anos. “Foi muito estranho, o fogo lambeu tudo muito ligeiro, parecia uma boca engolindo os barracos”, relata um morador.

Uma moradora da favela Água Espraiada,zona sul, conta que o último incêndio “ainda não

venceu um mês” e deixou 83 famílias sem moradia. “A causa do incêndio mesmo nunca fica em evidência, né? As autoridades não vêm aqui fazer uma perícia direito. Os bombeiros demoram e ainda chegam aqui com o caminhão vazio, muitas vezes. A defesa civil vem, faz um cadastro, dá um colchão, uma cesta básica e depois não aparece mais. Quando a gente é pobre, filha, só pode contar com a gente mesmo, quem apaga o fogo e começa tudo de novo é a própria comunidade. Em todas as favelas é assim”, diz.

Um incêndio também atingiu um alojamento, em tese provisório, na comunidade Paraisópolis, também zona sul, em setembro. Marisa Feffermann, psicóloga engajada na campanha Paraisópolis Exige Respeito, conta que as famílias já estavam no alojamento há um ano, com o dobro de pessoas em relação à capacidade e sem infraestrutura, desde que outro incêndio atingiu a região.

Os casos de incêndio são recorrentes e tem aumentado tanto que geram suspeitas. Na Real Parque, muitos moradores desconfiam de incêndio criminoso. Segundo eles, o fogo se espalhou com uma velocidade surpreendente. “Teve barraco que queimou de fora pra dentro”, diz um morador. “A perícia não vai acontecer, a prefeitura já limpou o terreno e os técnicos que vieram aqui disseram que vai ser difícil apurar, porque o terreno não foi isolado”, reclama outra moradora.

A área mais atingida pelo fogo é antigo palco de embate entre a comunidade e o poder público. Uma parte do terreno que pertence a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.) já tinha sido desocupada por uma ação de despejo em dezembro de 2007. “O fogo foi justamente numa área que a prefeitura queria nos tirar, que era uma briga na justiça pela desocupação de um terreno da EMAE”. Em nota, a Sehab confirmou que “a Prefeitura vem enfrentando dificuldades com as lideranças para retirar a população do local”, mas porque a região ‘é considerada de risco’.

A professora Ermínia Maricato, da Universidade de São Paulo (USP), explica que as favelas mais bem localizadas passam por um processo de adensamento muito grande e esse movimento, aliado às condições precárias – inclusive de instalações elétricas - gera um quadro de maior risco de incêndio. “A favela vai continuar aumentando enquanto o problema do direito à cidade e do transporte não for resolvido, principalmente as mais

bem localizadas. Este processo indica uma necessidade das pessoas estarem mais perto do trabalho, gastar menos com ônibus, estar mais perto de possíveis bicos”, explica a professora. Segundo Ermínia, esse quadro é fruto da ausência de uma política fundiária para diminuir o preço e a especulação com terra e viabilizar a moradia para população de baixa renda. “Numa sociedade como a nossa, se melhoraram as condições num determinado local, não tem jeito: aumenta o preço e aumentando o preço você expulsa o pobre”, afirma.

A moradora de Paraisópolis que conseguiu garantir seu direito à moradia depois de muita luta conta que os gastos subiram demais para o padrão de renda da população. “Depois de seis meses, a gente começa a pagar uma prestação de R$ 86 e tem várias contas, a água, luz, a iluminação pública – que aqui é a gente que tem que pagar, nunca vi isso. Só a conta de gás veio R$ 300,00 nos últimos 3 meses, pra quem ganha um salário mínimo (R$ 510,00) é totalmente inviável. Todo mundo quer pagar, mas nem todos tem condições, é muita falta de dignidade”, lamenta.

Pelo fogo, certamente, é que a favela não irá acabar. Isto porque os próprios moradores estão se habituando a conter as chamas, retirar seus pertences e botijões de gás, arrecadar e distribuir doações e reconstruir seus barracos. A moradora da Água Espraiada conta que, após o último incêndio, a prefeitura quis encaminhar algumas famílias para alojamentos em outras regiões da cidade, mas os moradores não aceitaram, já que lá vivem com a ameaça do despejo. “O pessoal não aceitou, né? Eles sabem que se saírem daqui perdem a posse, então eles arregaçaram as mangas e tão reconstruindo. As pessoas têm história, raízes, escola, emprego, vínculo aqui”, explica. Ela mesma diz que vive com esta preocupação desde 1962, quando o pai comprou a casa na Espraiada. “A gente tá sempre na corda bamba, pode ser locomovido a qualquer momento. Eles querem fazer da Espraiada uma nova (Avenida) Paulista, até a Copa de 2014 tiram a gente daqui”. O receio é fundamentado – a Operação Urbana Água Espraiada prevê a remoção das famílias das favelas próximas à avenida que passou a se chamar Jornalista Roberto Marinho.

A maior reclamação da moradora é em relação ao descaso. Segundo ela, faltam informações sobre o encaminhamento que será dado aos desabrigados. “Tem umas 15 famílias que receberam o auxílio aluguel para 6 meses, no total de R$ 3.600,00, mas não sabem o que acontecerá depois deste prazo. O pessoal não tem informação, não sabe do futuro, não sabe nem onde ir cobrar daqui esse tempo”.

A moradora de Paraisópolis retrata uma situação semelhante: os desabrigados receberão o aluguel social, mas ainda não sabem ao certo por quanto tempo e nem tem a garantia da nova moradia. “As pessoas não têm seus direitos garantidos, então são obrigadas a invadir de novo”, conta. “Eles tão prometendo entregar as habitações em 18 meses, mas eu mesma fiquei 4 anos esperando e tive que fazer muita pressão”. As famílias despejadas em 2008, por exemplo, ainda lutam pela sua moradia. “Teve caso de família que saiu pra trabalhar e quando voltou sua casa tinha sido derrubada com tudo dentro. Teve gente que entrou em depressão, eles viram tudo destruído por um trator, enquanto eram empurrados pela polícia”, relembra.

Nelson Saule, do Instituto Pólis, avalia que a questão da legalização dessas áreas para as comunidades é uma das principais reivindicações no horizonte. “O processo de legalização é fundamental, porque então as próprias famílias vão investir mais para melhorar a condição da habitação”, destaca.

Débora Prado é jornalista
debora.prado@carosamigos.com.br

Fonte: Caros Amigos

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