"Ao princípio, respondia que escrevia para que gostassem de mim. Depois esta resposta pareceu-me insuficiente e decidi que escrevia porque não me agradava a ideia de ter de morrer. Agora digo, e se calhar é verdade, que, no fundo, escrevo para compreender”
Por: Cláudia Motta
Publicado em 01/01/2009
O cético teve de acreditar no milagre. Foi isso que o escritor português José Saramago ouviu dos médicos que trataram do problema respiratório que o abalou, em 2007. Ateu e comunista convicto, ele não se dobra: “Milagre não foi. Devo a vida à qualidade excepcional daqueles médicos e a Pilar, que não deixou que eu morresse”. É a ela que Saramago dedica seu recém-lançado A Viagem do Elefante. Há dez anos Saramago passa ao lado de sua mulher, a jornalista espanhola Pilar del Rio, seus dias de sobrevivente, como se autodefine.
Aguçado por uma viagem a Salzburgo, Áustria, onde conheceu a história do elefante, José Saramago começou este livro em fevereiro de 2007. Escreveu umas 40 páginas e parou por causa da doença. Foram seis meses de pausa. Dois dias depois de receber alta e voltar para casa retomou o texto do que seria, segundo ele mesmo, o livro mais jovial e mais divertido que já escreveu. “Foi escrito em estado de pura felicidade por ter escapado. E mais: saí dessa doença com uma serenidade interior que nunca tinha experimentado. Pilar diz que é um livro cheio de sabedoria... e talvez seja”, disse, emocionado, durante uma sessão de leitura da obra, no fim de novembro, em São Paulo.
Quando publicou seu primeiro romance, Terra do Pecado (1947), Saramago não projetava ainda a carreira de escritor. “Fui escrevendo com uma preocupação: não escrever nada que não tivesse pensado. Sem ambição, sem fazer carreira, só fazendo aquilo que a vida me pedia.” Passou, então, quase duas décadas sem publicar novo livro. “Já há demasiados livros no mundo, se não tenho a dizer nada que valha a pena, para que escrever?”
Durante sua estada em São Paulo, o escritor - que nunca cursou uma universidade, escreveu 41 livros em 30 anos e recebeu o Nobel de Literatura em 1998 - falou sobre sua formação. Vindo de família humilde, mantinha com os pais uma relação distante. “Tive um irmão, dois anos mais velho que eu, que morreu muito cedo, e recordo que a minha mãe, evidentemente de maneira inconsciente, me fez sofrer quando era pequeno, comparando-nos e elogiando o filho desaparecido... Se calhar, é por isso que tenho mais referências de meus avós maternos... mas também não posso idealizar muito essas relações porque eram aldeãos, de vida muita dura, e não tinham muito espaço em sua sensibilidade para o carinho”, diz, em depoimento a Juan Arias em El Amor Possible.
Em seu livro Pequenas Memórias, refere-se ao avô Jerónimo Melrinho, que perdeu em 1948, como um “Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca...” Sobre a avó Josefa Caixinha, morta em 1968, havia escrito um ano antes, no jornal A Capital: “O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vai rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo… Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem te roubou?”
Saramago acredita que a interpretação que damos para as coisas tem a ver com a pessoa que somos e, portanto, com o olhar que temos e a sensibilidade que transportamos. “Quando me vi perante a natureza na minha aldeia Azinhaga, era uma criança. Uma criança simples e pobre, nem sequer precoce. Mas era sensível e sério. E uma criança séria era um bicho um pouco raro. Estava cheio de melancolia, às vezes de tristeza. Gostava da solidão.”
Sua literatura nasce então desse olhar sensível, sério e melancólico sobre o cenário de sua infância, e vai desenvolver-se sob os clássicos portugueses aos quais credita sua influência, como Padre Antonio Vieira, Antero de Quental, Almeida Garret - “em Viagens da Inglaterra vi uma luz a seguir”. Ele lembra também de Kafka como “o maior dos modernos” e destaca a importância de Proust, Borges e Fernando Pessoa -“como é que parimos aquele homem?”
O que a vida pedia
Aos 86 anos, Saramago ainda é o menino com sensibilidade e melancolia à flor da pele. Chorou ao assistir à adaptação de seu livro Ensaio sobre a Cegueira (de Fernando Meirelles) para o cinema, obra emblemática da ausência de virtude, notada pelo escritor, no homem: “Quem quer ser bom hoje, simplesmente bom? O necessário é triunfar, essa é a regra, todos queremos aparecer como triunfadores”. Para ele, sempre pode haver particularidades que tornem o nosso fim, sempre triste, mais chocante. “É o caso do elefante, que fez longa viagem num rigoroso inverno, para ter um triste fim. Uma metáfora que trata da inutilidade da vida, de não conseguirmos fazer da vida mais do que ela é.”
No caso dele, porém, as particularidades da vida foram mais generosas, sobretudo quando, aos 63 anos, conheceu Pilar: “A vida pensou ‘tem de ser agora’, se não, será demasiado tarde. Se tivesse morrido antes de conhecer Pilar, tinha morrido muito mais velho do que sou hoje”.
Cada expressão sua, dita ou escrita, por meios distintos, traz um pouco do homem genial, que respeita os livros, as pessoas e seus defeitos e sabe, como poucos, traduzir toda essa desordem da natureza humana na mais perfeita prosa poética. “Escrever é uma caixinha de surpresas. Espero sempre que às pessoas ocorra: ‘como é que esse sujeito foi pensar nisso?’”. Saramago ensina que é preciso levar em conta “a opinião do livro”, perceber o que ele quer. “Nesse caso (do Elefante), o livro quis ser alegre e eu aceitei, ajudei-o a ser.”
Fonte: Rede Brasil Atual
Os patriotários prometem atacar de novo
Há 10 meses
Nenhum comentário:
Postar um comentário